terça-feira, 29 de abril de 2008

Lanzarote, a terra negra.

Lanzarote é um daqueles lugares que tinha todas as condições para não ter nada. Vista do ar, a oriental ilha do arquipélago das Canárias assusta pela aspereza do ocre, aqui e ali ocultado por manchas brancas ou, mais raramente, verdes, que nos levam a presumir que uma parte do deserto foi roubada a África pelas correntes do Atlântico. Mas o que é que se podia pedir a um pedaço de terra moldado pela caminhada do magma na sua arrepiante ânsia de liberdade? Nada! Ou talvez um homem, que soubesse amar a natureza, ainda que bruta, e esculpisse nela a beleza necessária para que ao primeiro olhar mais atento, o viajante se apaixonasse.

Há dois nomes a decorar quando se chega a Lanzarote: Timanfaya, o desajeitado vulcão que hoje se deleita, adormecido, deixando-se observar pelos milhares de turistas que lhe gabam a grandeza e se calam perante o seu historial de destruição; e Manrique, um artista que foi César no nome e na forma como conseguiu emprestar à sua terra natal um ar de museu vivo. O primeiro impôs à população uma cultura e um estilo de vida. Ao segundo, deve a ilha um conceito - Arte-Natureza/Natureza-Arte - e a clarividência com que hoje preserva essa cultura, fazendo dela a maior riqueza destas paragens.

Com uma extensão semelhante à da Madeira, Lanzarote oferece-se fácil ao viajante desejoso de lhe conhecer o rosto para lá do cosmopolitismo da capital, Arrecife e o do muro de hotéis embasbacados sobre a água entre Puerto del Carmen, a sul, e Costa Teguise, alguns quilómetros a norte.
O Parque Nacional de Timanfaya é o melhor sítio para acabar com o debate, herege, sobre a existência ou não do Inferno. Entre os não crentes, quem não se calaria se visse diante dos olhos o próprio demónio, ainda que convertido em símbolo desta área protegida que foi classificada em 1974. O último refúgio do anjo caído, hoje o principal ponto de atracção da ilha é uma reserva de duzentos quilómetros quadrados que resguarda um cenário inóspito, polvilhado por mais de uma centena de vulcões aparentemente adormecidos, depois de milénios em que se entretiveram a modelar este pedaço de terra.

Para ver de perto as Montanhas de Fogo, onde reina Timanfaya, é preciso pedir boleia a um dromedário ou, para uma viagem mais longa, apanhar o autocarro que durante catorze quilómetros leva os olhos ao reencontro com o que seria o rosto do mundo há milhões de anos. Árido, entregue ao vento, o espaço à nossa volta deixa-nos encolhidos perante a solidão lunar desta paisagem onde praticamente só pequenos líquenes conseguem desfazer a verde a monotonia dos vários tons de ocre. Árvores? Só meia dúzia de figueiras. Animais? Só répteis, regalados, e algumas aves, que olham a tristeza em baixo com desdém, como se soubessem que a terra não tem nada para lhes dar.

Cada curva desenhada pela “guagua” nesta rota dos vulcões é um golpe na memória que temos do mundo. E só deixamos de acreditar que o abandonamos quando a voz, na cassete que se vai escutando, nos apresenta o vale da Tranquilidade, um paraíso interior onde as cinzas deram uma oportunidade à vida, que vinga, silenciosa. Mas o silêncio é enganador. Por debaixo dos rios de lava negra e seca, cujas arestas imprecisas mostram que mal tiveram tempo de se afeiçoar ao chão, a terra descansa, à espera de uma nova oportunidade para mostrar violentamente as suas entranhas. O Inferno não existe? E se souber que a menos de dez metros do chão que pisa, as temperaturas chegam aos 600 graus...
Dificilmente haverá um território no mundo cujo poder de atracção dependa tanto de um só homem. Tomando o lugar da lava, César Manrique deixou escorrer todo o seu talento ilha fora e um quarto de século bastou para que as erupções de criatividade deste ecologista, arquitecto, urbanista, pintor e escultor igualassem a capacidade transformadora de Timanfaya. Mas acima de tudo, a ele se deve a consciência que os habitantes de Lanzarote, classe política incluída, têm hoje da importância da preservação do património local, tenha este o dedo do magma incandescente, ou a marca do homem conquistador.
Foi graças a este pintor, escultor, arquitecto, paisagista e urbanista que a ilha se manteve à margem das grandes correntes de desenvolvimento dos anos 70. Percursor do conceito de desenvolvimento sustentado, um princípio que pondera a salvaguarda das potencialidades naturais e culturais com a evolução económica, Manrique impulsionou os sete principais centros turísticos da ilha.

Uma das suas primeiras obras foi a reconversão da gruta dos Jameos del Agua num autêntico centro de arte, cultura e turismo. Num labiríntico conjunto de galerias subterrâneas foi criado um auditório natural, um bar--restaurante, uma pista de dança, túneis de circulação, escadas, salas e até um núcleo de investigação e divulgação do fenómeno vulcânico, denominado a Casa dos Vulcões. Tudo isto devidamente conciliado com o habitat natural das espécies vegetais subterrâneas. E não só. Num dos lagos dos Jameos vive um crustáceo, uma espécie antiquíssima, que perdeu a cor e a visão ao adaptar-se, durante milénios, aos obscuros labirintos das grutas.
Manrique aproveitou a configuração das grutas e as suas excelentes condições acústicas, para criar um auditório, com capacidade para 600 pessoas, onde têm lugar vários concertos e espectáculos de dança. A gruta pode ser visitada de noite revelando-se, aí, todo o excelente trabalho de concepção luminotécnica que nos remete para um mundo assombroso e fantástico.

Os Jameos del Agua, na zona Norte da ilha, confinam com a Cueva de los Verdes apesar de a ligação sub terrânea estar interdita. Respeitando a imponência do lugar, o arquitecto introduziu-lhe, tal como nos Jameos, um universo de cor, reflexos e luzes e um belíssimo pequeno auditório. As formas caprichosas, delineadas pelos vulcões, foram refinadas pelo apuro estético de Manrique.








Igualmente espantosa é a estratégia de plantação da vinha, uma malvasia (vinho branco, muito floral, um pouco adocicado e de alto grau alcoólico) que já ganhou vários prémios. Neste caso, tal como acontece no cultivo de legumes, o campo tem de ser cuidadosamente preparado com camadas de lava, terra fértil e grão de lava triturada sobrepostas. As ramagens são arqueadas para que a humidade nocturna e o orvalho libertado pelas próprias plantas pingue sobre a lava. Esta deixa passar o orvalho até à terra fértil, protegendo-a, ao mesmo tempo, dos ventos. A defesa face aos ventos é sempre reforçada com muros.
Se dúvidas ainda restassem para conhecer Lanzarote, a última, mas não menos importante, cartada de argumentos recai nas praias e nas excelentes condições para a prática de windsurf, vela e outros desportos radicais. Puerto del Carmen é o centro balneário principal, com alguma vegetação tropical. A praia do Papagayo é igualmente famosa, embora menos acessível dada a ausência de estradas alcatroadas. A praia Blanca, de areia clara e águas cristalinas. Acima de tudo, a temperatura amena da ilha, ao longo de todo o ano, fazem de Lanzarote um destino a visitar sem tempo ou época marcadas. Que o diga o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago, que a elegeu como residência permanente.

O mais importante imaginar que se está numa paisagem que só. existe naquele lugar, Lanzarote.
Foi mais uma louca viagem da dupla Marina e Carolina, Junho 2006.




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